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sexta-feira, 10 de novembro de 2006

A guerra em Angola era assim . . .

Transcrevemos o Email que recebemos do nosso companheiro João Rego:
Amigo Bras,
Como se fosses um director de jornal, fica à tua responsabilidade a publicação deste meu devaneio.
Se achares bem fazer alguma censura, estás autorizado.
Um abraço.
João Rego


Caros amigos,

As fotos de Ambrizete despertaram em mim sentimentos e recordações a um tempo nostálgicas e pesarosas.
Ambrizete foi a última localidade onde pernoitámos antes de seguir para o Lufico. A viagem até aí não se me havia apresentado carregada de perigos. Eram os benefícios da ignorância, apesar de tudo.
Mas foi na missão de Ambrizete que um dos oficiais, já com a sua farda amarelada indiciadora da sua veterania, melhor dizendo, do fim da sua comissão de serviço, ao saber do meu destino, me deu uma pancadinha nas costas e desejou-me muita sorte. Aí, aqueles meu apêndices esféricos que nos homens são referências de masculinidade e “portanto” de fortaleza, reduziram-se à sua ínfima dimensão. Não sei se inconscientemente levei as mãos ao sítio para comprovar a situação.
Dia seguinte, depois de organizada a coluna na qual se incorporavam alguns elementos da população civil, mormente mulheres e crianças, lá seguimos. A presença daqueles civis proporcionou-me alguma calma. Com os diabos: se eles ali iam, até bem humorados alguns...
Mas em Ambrizete, por muito curta que tenha sido a paragem, tinham ficado os meus olhos e a minha ilusão. Em Luanda já me tinha apercebido da força telúrica de África, porém a pequenez daquela povoação à beira Atlântico e a promessa de uma vida calma ao compasso da natureza, deixou-me completamente subjugado. Até a sonoridade do seu nome; Ambriz já soava bem, mas Ambrizete, nome de mulher, um regaço tranquilo, uma promessa de amor na praia, uma refeição de marisco ou peixe, eu sei lá. Seria o meu espírito a querer esconjurar os medos que trazia comigo?
Durante a comissão passei em Ambrizete não mais do que três vezes. Numa delas instalei-me no hotel. O quarto em que pernoitei tinha uma imprescindível, estética e ecológica rede mosquiteira. Desfrutei de um belo passeio à beira mar e da comida do hotel.
Havia uma peculiar atmosfera social naquele hotel. Creio que todos os quartos se situavam no andar superior e no rés-do-chão o salão do restaurante e bar. Uma senhora já na terceira dezena de anos vividos, que creio era a dona, deambulava pelo salão dando as boas vindas aos comensais, quase todos militares vindos do “puto”, deslocados do seu habitual meio social. Creio que era apelidada de “madrinha”, provavelmente à semelhança das madrinhas de guerra que apoiavam muitos dos militares em comissão de serviço naquelas e outras paragens de África. Entravam e saiam fardas. Além de hotel era também o clube social do sítio. (Choca-me ver a foto actual desse estabelecimento)
Um encontro com dois agentes da Pide que tinham estado no Lufico, sem que eu me tivesse apercebido da razão da sua estada, conduziu-me às instalações daquela polícia. Aí compreendi a razão do convite: apresentaram-me um farrapo humano correspondente ao que tinha sido um assalariado na nossa companhia no Lufico. Tinha a alcunha de Kit Carson. Tinha sido relacionado com uma emboscada, ocorrida, salvo erro, num troço da estrada entre Ambrizete e Ambriz, a uma brigada da Junta de Estradas. Para lhe sacar informações tinham-no deixado de rastos. Eu, naquela situação teria confessado que o sol é quadrado e que o Papa era uma mulher... Agarrou-se a mim como se eu fosse o Cristo e ele o paralítico do episódio bíblico. E eu nada fiz, senão estender-lhe a mão. Paralisei. Nem me lembro se equacionei os benefícios que eu próprio poderia sacar da actividade policial, na medida em que as hipóteses da minha intervenção bélica ficariam bastantes reduzidas.
Aos agentes interessava que eu registasse a eficiência da acção da polícia para segurança das forças armadas portuguesas em luta contra as forças independentistas, na época simplesmente apelidadas de terroristas. Registada ficou. O que não apurei foi se o Kit Carson realmente estava implicado na emboscada ou se os agentes tiveram necessidade de apresentar serviço.
E por que haveria de ser Ambrizete, aquele regaço tranquilo, a proporcionar-me esta visão?
Regressar para descobrir as feridas, as rugas? Não sei se quero. De momento agrada-me poder ver as fotos de antes e de agora.
A minha gratidão para o responsável pelo envio das imagens e para o organizador do blog.
Saudações do Lufico

João Rego “


Nota da redacção do Blog

Não é, nem será nunca nossa intenção censurar o que quer que seja nos escritos dos nossos leitores, em especial, naqueles que foram nossos companheiros de armas.
Vamos ficar na expectativa de mais escritos seus de vez em quando.
Assim o esperamos, pela pela profundeza e subtileza das suas dos seus relatos e “análises”.
Um grande abraço ao João Rego

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro João Rego,
Foi com uma profunda nostalgia, uma pequena lágrima no olho e um travo a saudade que eu e a minha mãe lemos este e-mail. A dona do Hotel a que se refere era minha avó, Lídia Afonso Flores, a tão amada "madrinha". Os meus avós eram donos do mesmo e a minha mãe e a minha tia estudavam em Luanda num colégio. As férias eram passadas no hotel num paraíso que hoje pouco deixa à imaginação... Os meus avós deixaram o Ambrizete no ano de 1975, após a revolução, e nunca mais o sorriso de ambos foi o mesmo. O Hotel também nunca mais foi o mesmo... o Ambrizete também nunca mais será o mesmo. Um muito obrigada e uma abraço a todos os que partilharam os deliciosos pratos da "Madrinha", que hoje, infelizmente, já não está entre nós.
Atenciosamente
Liana

Anónimo disse...

Entrei neste blogue por curiosidade e porque uma pessoa que faz parte da minha vida viveu e percorreu momentos e espaços dessa região de Angola que eu não conheço, mas que, como todo o Continente Africano, tem de ser bela. Angola só conheço a do pós- Independência. Razões de identificação ideológica despertaram-me e acirraram-me a vontade de "olhar" de frente um país cujo povo foi capaz de se organizar e vencer uma política colonialista que se impôs durante séculos e, durante séculos, contestada pelas populações nativas... lembremos a Rainha Lueji. Fui, olhei e vi... e gostei. África não se esquece nunca. Deixa sempre a nostalgia de querer regressar, mesmo se lá estivemos em momentos que nos remetem para um passado de inconsciência face aos problemas do mundo, no caso a guerra colonial. ÁFRICA é beleza e os africanos merecem todo o respeito. África é o futuro... é a JUVENTUDE em contraponto com o estádio de senilidade que a Europa/EUA apresentam, pese embora pretendam demonstrar o contrário. Gosto do vosso blogue. Continuem

filipe branco disse...

fui militar em ambrizete no ano 1973..1974 conheci muito bem a d.lidia para mim era mais do que madrinha lamento o desaparecimento desta grande e amiga senhora.
ambrizete deixou saudades do brinca na areia das pessoas que viviam la.
um abraco para todos que la passaram.